PLAUTINO SOARES – O MEU PARAÍSO

VOCÊ SABE O QUE SIGNIFICA VIVER EM UMA VILA COM MENOS DE 1000 HABITANTES E SEM ENERGIA ELÉTRICA?

Escrevi um texto imenso para lhe dizer que sim, eu sei o que é isso. Muito do que você ouviu falar, eu vivi. Se tiver paciência, leia.

Ontem a noite falando com um conhecido de Minas Gerais, fiquei nostálgica.
A vila onde nasci, que se chamava Paraiso, tem até hoje, apenas 978 habitantes ( IBGE/2010), umas 4 ruas, a praça onde fica a igreja e o campo de futebol.
Eu saí de la quando tinha 9 anos de idade.
Por tudo o que vivi no Paraiso, até parece que isso foi há 3 séculos, no entanto, todas as memórias estão muito vivas.
Eis algumas coisas:
– A vila e os distritos vizinhos não contavam com a rede de iluminação pública, nem mesmo a motor. Então eu sei o que é um céu totalmente estrelado. Havia claridade apenas em noites de lua cheia. Era quando todos ficavam na rua. As mães sentavam na porta das casas e ali ficavam conversando com as amigas. Os pais ficam em frente, do outro lado, falando de seus assuntos preferidos e assando carne. E nós, as crianças, brincávamos de roda, passa anel e outras coisas. Em noites sem luar, a escuridão era total e sem lanterna era impossível enxergar quem viesse na direção contrária.
Sem falar das estrelas cadentes e tb de algo que nunca ninguem explicou e ainda nao acreditam em mim: as vezes uma estrela mudava de lugar. Nao era aviao. Se ha uma explicação lógica, eu prefiro acreditar que elas mudavam de lugar realmente.

  • Como não havia energia elétrica nem nada de tecnologia, eu via televisão apenas quando ia a casa da minha avó em São Paulo, mas não me importava. No Paraíso, era tudo feito mão mas minha mãe contava com a Carmem que trabalhou lá em casa durante anos. Bolo era assado no fogão a lenha, colocava a forma em cima da ” trempe” e em cima ficava um recipiente de aluminio com as brasas. Assim, assava embaixo e em cima. Quando meu pai matava porco, a carne era conservada na lata com banha que vendia no mercado.
    No fogão a lenha era passado barro branco. Depois modernizou e era feito com cimento e por cima passava cera vermelha. Era moderno. Nossa casa era boa, o piso de madeira que fazia ” nhem nhem’ quando caminhava. Era moderno.
    Algumas casas nas imediações, bem mais simples, com piso de terra onde passavam bosta de boi fresca e tudo ficava verdinho. Algumas familias lavavam roupas nos riachos e as vezes eu ia junto.
  • Na época do Divino, alguns moradores saiam a noite vestidos a caráter cantando de porta em porta. Eu não sabia porque, mas era necessário deixar comida do lado de fora, as portas e janelas ficavam fechadas e ficávamos dentro ouvindo as cantorias. Eu morria de medo, mas não sei bem porque.
  • Na época da quaresma, eu participava da Via Sacra que era feita dentro da igreja.
  • Paraiso fica entre as montanhas e havia longos períodos sem chuva. Era quando algumas senhoras se uniam, colocavam latas com água na cabeça e iam caminhando e cantando até o alto da montanha, onde havia um cruzeiro. Lá, elas molhavam o pé dele enquanto entoavam cantos pedindo que a chuva caisse. As vezes eu ia junto.
  • Em alguns fins de semana, íamos para a fazenda de um parente da minha mãe, que esqueci o nome. Quando minha avó materna era viva, ela ia junto. Fazíamos pamonhas. Em um grande tacho faziam rapadura, e minha avó sempre fazia o puxa puxa para mim. Puxa puxa é quando a caldo da cana atinge o ponto de fio, basta pegar um pouco e colocar na água que vira puxa puxa. Minha avó nunca se esquecia de fazer para mim. Um vez fomos apenas nós duas, ela a pé. Eu deveria ter 7 anos e fui com minha bicicletinha. Na volta, perdi o controle em uma ladeira, muito grande para minha idade e disparei ladeira abaixo, claro que perdi o controle e minha avó desesperada correndo atrás de mim.

  • Outra grande lembrança era a coroação à Nossa Senhora Aparecida.
    Era um grande momento. Antecipadamente, era feito um altar e no centro er colocada a imagem de Nossa Senhora. Nós, as meninas ficávamos no altar, vestidas com as roupas de anjo, cantavávamos hinos durante a missa com toda uma coreografia com os braços. O ponto alto era a coroação. Uma das meninas era a escolhida. Todas queriam coroar Nossa Senhora. Eu fui escolhida uma vez, infelizmente perdi todas as fotos.
  • As festas juninas passávamos na fazenda da Dona Durvalina. Era fora da cidade, mas não sei exatamente onde. A festa durava 3 dias e para receber todos, matavam boi, galinhas, porco, enfim, era muita comida e música. A fogueira, muito alta, era acesa 3 dias antes e exatamente a meia noite do dia 23, faziam um caminho de brasa e quem tinha coragem se arriscava. Meu pai tentou e se lascou todo, queimou as solas dos pés e nunca mais tentou.
  • Minha tia Glória morava na época perto de Ipatinga em uma vila chamada Ipaba que tem hj, 355 habitantes. A casa dela era na beira da linha do trem. Era uma barulheira danada. Entre a passagem de um trem e outro, brincávamos nos trilhos e saímos correndo quando ouvíamos o apito da locomotiva.
    Tb sem energia eletríca, a noite ficava escura. Foi assim que meu primo Elias perdeu um olho, ao sair a noite furou um dos olhos no arame farpado que servia de varal de roupas.
  • No Paraiso eu presenciei algo que nunca me esqueci: a fúria das abelhas. Na casa do Geraldinho Pexim frito, havia uma caisa imensa de abelhas. Sem querer a mãe dele bateu na casa e as abelhas se enfureceram. Um círculo preto formado pelas abelhas em volta da casa, não deixava ninguem entrar nem sair. Todos da vila olhavam a cena do lado de fora. Até que a ambulancia chegou de outro distrito para socorre-las junto com os bombeiros. Mãe e filha ficaram hospitalizadas alguns dias em Valadares.
  • Falando no Geraldinho Pexim Frito, ele era menino de uns 8 anos, dos cabelos loirinho, quase brancos , escorrido, na altura dos ombros. Eu era apaixonada pelo Geraldin Pexim Frito. A empregada da minha mãe, a Carmem havia me dito que era dia dos namorados e eu tive a infeliz ideia de comprar um presente para ele, que sequer sabia das minhas intenções. Fui à igreja, em frente a minha casa, ele morava ao lado da igreja. Minhas amigas e eu brincávamos la. Ninguem sabia da minha paixão. Em segredo, sem me revelar e sem dizer o motivo, pedi para alguém, que não lembro quem, entregar o presente para o Geraldin que estava dentro da igreja. Eu fiquei do lado de fora observando a cena. De repente vejo o presente voando de dentro da igreja para fora: era o presente que eu tinha dado. Ele odiou e jogou fora de dentro da igreja. Eu fiquei arrasada. Minha paixão acabou alí mesmo e de tanta vergonha, eu nunca contei isso para ninguém, até este momento.
    O presente era uma porcaria mesmo. Era um leite de rosa. Tá, pode zuar. Mas eu achava que estava fazendo uma grande coisa. Eu tenho vontade de encontra-lo, só para dar um soco na cara dele.
  • A minha Madrinha Celina sempre fazia vestidos e um aniversário ela me deu dinheito de presente. Eu fiquei tão feliz.
    A Maria e o Joao Cruz me deram a filha recem nascida para crismar quando eu tinha 8 anos. Se chamava Joelma. Ela adoeceu e morreu nos braços da Maria. Me lembro da cena. Em frente a casa dela havia uma árvore com bancos embaixo. Com joelma no colo desfalecida Maria estava desesperada. Joelma morreu.
    Quando chegou Cidinha, Maria me deu ela para crismar.
  • Na escola, brincávamos de tudo e participávamos das festividades de 7 de setembro. No desfile, desde com 6 anos eu era baliza, ia na frente da fanfarra e claro, fazendo coregrafias pré ensaiadas. rs Tão bonitinha
  • Durante o dia, brincávamos de tudo: pular corda, correr pelas ruas, subir em árvores, pegar manga, isso me deu alguns inchaços no olho por mordida de marimbondo, pular o riozinho de uma margem a outra para ver quem pulava mais longe e nesta brincadeira, um dia torci o pé, bem no dia que haveria um comício na praça, um grande evento. Sem saída, coloquei o cabo de vassoura embaixo do braço para dar apoio e fui para a praça e pulei em um pé só. Aida me lembro muito bem daquele dia. Aos domingos ia ao campo ver meu pai jogar futebol e eu ficava na lateral gritando e torcendo por ele. Ele sempre olhava na minha direção quando fazia um gol.
  • Uma das coisas mais legais era quando chegava o circo. Era uma festa. Para fazer a publicidade, o palhaço ia com um megafone pelas ruas e nós, as crianças íamos atras, naquelas cenas típicas. Ele gritava frases de ordem e respondíamos. O palhaço o que é . Ladrão de mulher. Hoje tem marmelada? Tem sim senhor. E por ai vai. Eu vivi isso. A noite, embora o meu pai sempre comprasse o ingresso, meus amigos e eu sempre tentávamos entrar passando escondido embaixo da lona. Na maioria das vezes éramos pegos e expulsos do circo. Mas voltávamos e insistíamos. Era a parte divertida. O risco, o perigo. Meu pai, no fundo, adorava as minhas travessuras e dizia que eu deveri ter nascido homem, pq era muito danada. Mas eu nao via assim, nem sabia o que aquilo significava. Eu apenas não gostava das brincadeiras monótonas das meninas e preferia a agitação dos meninos.
  • O carro do meu pai era uma kombi, sempre foi o carro preferido dele.
    Foi em uma kombi que deixamos Minas e fomos para o Mato Grosso e depois Rondonia. Na estrada, nossa comida era feita de em um fogão improvisado com tijolos. Quase no fim da viagem, em um trecho de estrada deserta, o sal havia acabado. Tinha só arroz e daquele momento até encontrar um banco, que não havia tantos como hj, nosso almoço era arroz sem sal.
  • Minha mãe conta que meu pai adorava minhas artes. Quando eu tinha 4 anos ele havia esquecido a chave na ignição, eu entrei sem ele ver e liguei a kombi dele. Ele quase morreu de susto, mas dava gargalhava depois.
    No quintal de casa, onde criávamos porcos e galinhas, minha mãe protegia algumas árvores que ela plantou com um tambor, que com o tempo apodreceu a medida que as árvores cresciam. Com cerca de 4 anos, subi, cai e uma ferida profunda na coxa se formou, a cicatriz tenho até hoje.

Da minha infância no Paraiso, tenho saudade de quase tudo o que vivi. E tenho muitas, mas muitas saudades de muitas pessoas: da minha madrinha Celina, que mora em Ipatinga, da Maria e do João que moram em São Paulo, da Minha afilhada Cidinha filha do João e Maria que eu crismei quando tinha 8 anos de idade, da Carmem, da Maria Chica, Lurdinha, Lucinha, meus primos, mas confesso que a saudade maior é do Enaldo, o filho da dona Nega, que me viu nascer. Depois ele se mudou para uma cidade vizinha. Enaldo tinha 19 anos e minha lembrança é a partir dos 5 anos. Quando ele chegava na vila, a primeira pessoa que ele corria para ver, era eu. Eu sinto um aperto no coração ao me lembrar dos braços do enaldo me jogando para cima e da minha felicidade correndo ao avista-lo. Eu me lembro perfeitamente bem da cara de alegria do Enaldo. Eu o adorava. Eu passei a vida procurando por ele. Recentemente tive notícias dele através da minha aflhada e no ano que vem, espero encontra-lo. Ele não tem a menor ideia de que aquela menininha, ainda hoje tem vontade de chorar so de lembrar da felicidade que ele lhe proporcionava.

Já passei por mil coisas na vida, coisas marvilhosas e tenebrosas, mas eu sempre preferi valorizar as coisas boas, e nao poderia ser de outro jeito, afinal, eu nasci no Paraíso.