Todo mundo deveria ter uma Míriam na vida. Eu tive e tenho.
É sobre ela que quero falar.
Antes, preciso explicar que há cerca de um mês, assim que o auxílio emergencial do governo foi liberado, inúmeras pessoas chegavam de madrugada na Caixa para garantir melhor lugar na fila. Quando começou a circular um video de uma pessoa debochando daqueles que lá estavam.
Eu fiquei super comovida e fiz uma live no Facebook sem muitas pretensões, estava agindo levada pela emoção. O video viralizou chegando a quase 100.000 visualizações. Diversas pessoas começaram a me questionar sobre a minha emoção.
A primeira coisa é o meu total desprezo pelo deboche. Quem debocha tem a intenção de menosprezar, humilhar e diminuir o outro. A segunda é que eu sei o que é passar dificuldade e não ter dinheiro para comprar comida.
É precisamente aqui que que começa o meu sentimento de gratidão pela Miriam.
Ela entrou em nossas vidas e nunca mais saiu.
Miriam já trabalhava em minha casa havia 5 ou 6 anos quando a minha produtora de video foi roubada. Levaram tudo. Poucos meses após o fim do meu casamento. Amanheci com 5 funcionários na produtora e a Miriam na minha casa, e sem nenhuma condição e equipamentos para continuar trabalhando para paga-los. Foi um período de inferno de Dante.
Meu funcionário na época , o Eder Furtado Alves, foi meus dois braços e eu não sei o que teria sido de mim sem ele. Tenho muito gratidão, tanto que ele não sabe.
A Mirian, durante os 9 anos trabalhados em minha casa, foi uma mãe para meus filhos e foi tudo para mim.
Quando ela entrou, meu filho que hoje tem 24 anos, tinha 3 meses de vida e o outro, hoje com 27, tinha 2 anos. O filho mais novo dela também tinha 2 anos. Pedi para traze-lo com ela todos os dias e a mais velha, de 9 anos, se não me falha a memória, mudamos para a escola mais perto da minha casa, assim Letícia sairia e almoçaria conosco e Mirian ficaria tranquila.
É uma lógica simples: se os filhos dela estivessem bem cuidados, certamente ela cuidaria melhor dos meus. E além disso, não me parecia justo ela cuidar dos meus e os dela ficarem sem os cuidados devidos. E isto deu super certo durante os 9 anos em que estivemos juntas. Nossos filhos se tornaram amigos e brincavam juntos.
Após o roubo na produtora e sem trabalho, no final quase todos me abandonaram, meu telefone não mais tocava, me sobraram 2 amigos e a Miriam. Fui vendendo o que sobrou da produtora para pagar todos os direitos legais dos funcionários, e ao final de 3 ou 4 meses meses eu não tinha mais dinheiro e disse para Miriam que ela precisava procurar outro emprego. Ela não procurou.
Mais 3 meses se passaram e após 2 meses sem salário, eu insistia que não podia mais mantê-la e ela se recusava a sair da minha casa, alegando que tinha que cuidar de mim.
Eu perdia peso e as forças. Não conseguia mais fazer nada. Ao final de 6 meses, sequer conseguia comer. Não conseguia sair da cama. Estava emocionalmente destruída. Sem trabalho, sem dinheiro, abandonada pela maioria dos amigos e recém divorciada. Eram muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo.
Miriam trazia peixe que sua mãe mandava de Manicoré, um vilarejo na beira do Rio Madeira.
Comecei a vender os monitores que sobraram e que não haviam sido roubados, e com o dinheiro comprava comida. As contas se acumulavam. Foi quando aprendi a fazer pão, porque havia dias que não tinha dinheiro nem para isso.
Míriam e eu temos diversos momentos marcantes, mas houve um em especial que me marcou muito: eu não tinha apetite e forças para sair da cama, Miriam, que é a pessoa mais calma que eu conheço, foi até o quarto, se sentou à beira da cama com um prato de comida e gritou comigo dizendo:
– Se você não comer isso aqui agora, eu vou enfiar à força na sua goela abaixo. Levanta agora.
Eu me sentei e comi. Ela começou a me dar comida na boca. Na boca.
Naquela noite, me ajoelhei e pedi a Deus para me dar uma luz, pedi para me salvar.
Como um milagre, na manhã seguinte, o então deputado estadual Nathanael Silva telefonou para mim e me contratou para trabalhar como assessora de imprensa. Você pode falar o que você quiser dele, mas eu sempre serei grata à ele.
Mesmo contando com uma trabalho novo, não poderia me dar ao luxo de manter Míriam em minha casa. Após mais 1 mes, consegui convencer Miriam a sair de minha casa. Por coincidência, foi um conhecido meu que ligou pedindo suas referências e lhe disse para contrata-la imediatamente. Com as referências, começou a trabalhar em um apartamento na mesma rua, meio período, então, todos os dias, saía do novo emprego e vinha direto para minha casa. Eu nunca pedi isso a ela. Vinha porque ela faz parte da história desta família. Porque se preocupava e se preocupa ainda.
Miriam me levantou inúmeras vezes. Quando me separei do meu marido, que por sinal é uma pessoa que ela adora, porque ele a ajudou muito e ela sabe ser grata, ela me apoiou emocionalmente. Ela me levantou quando tive novas desilusões amorosas, com amigas e com trabalhos. Me aconselhava, me estimulava, me chamava a atenção e até mesmo me impediu de cometer uma pequena vingança contra uma amiga que havia traido a minha confiança. E eu já havia sido alertada por Mirian que aquilo iria acontecer. No entanto, eu com ódio e sangue nos olhos preparei uma vingança. Miriam me pegou pelos ombros, me chacoalhou enquanto dizia:
– Não vai fazer nada. Sabe por que? Porque você não é assim. Você não é assim.
De fato, não sou vingativa e ela conhecia bem este meu traço.
Temos 9 anos de muitas histórias e confidências diárias, e outros mais porque a nossa amizade continua.
Porque eu permito que Miriam tenha tanto poder sobre mim?
Porque ela me amou quando nem eu mesma me amava. Porque ela, naquela época, foi mais mãe dos meus filhos do que eu conseguia ser para eles. E foi uma mãe para mim.
A Miriam é a única pessoa a quem eu escuto com respeito quando fala de religião e da bíblia, porque ela pratica o que fala, assume suas falhas e sabe pedir desculpas sinceras.
Por isto que Míriam é, além da minha mãe, a única pessoa no mundo inteiro que tem moral para colocar o dedo na minha cara e me mandar calar a boca.
Míriam me faz ouvir calada, porque ela ficou comigo quando eu mais precisei de socorro, de afeto, de ajuda.
A Míriam deixou em mim seu legado e ele é imenso.
Os anos passaram, a vida mudou, tudo melhorou e ela continuou me visitando todos os dias após o trabalho e me aconselhando sempre que necessário. Ela foi fundamental na criação dos meus filhos, continuou frequentando a minha casa e participando de todos os aniversários dos meus filhos enquanto eles moravam comigo, ainda que a comemoração fosse apenas entre nós. Viu meus filhos crescerem e hoje, ela se sente um pouco avó do meu neto. E após todos estes anos, ela continua inesquecível e extremamente querida por mim, meus filhos e pelo meu ex marido, a quem ela ainda hoje, adora. Como boa sagitariana dramática, eu fingia ciúmes e reclamava:
– Você gosta mais dele do que de mim.
Ela ria e respondia:
– Eu gosto dos dois igualmente.
A Míriam só foi lenta para descobrir uma coisa sobre mim: durante os 9 anos que ela trabalhou em casa, após o almoço, se sentava para ver a novela do vale a pena ver de novo. Eu me deitava no sofá e dizia que achava que estava com piolhos e se ela poderia verificar. Ela procurava procurava e não achava. E eu dormia com a cabeça apoiada em suas pernas. Foi apenas la pelo terceiro ou quarto ano, que ela descobriu a minha tática, mas eu continuei fazendo a mesma coisa e ela também.
E no mesmo horário, a cena se repetia:
– Miriam
– Ja sei! Está com piolho. Deite-se aqui!
Nunca humilhe ninguém por se sentir superior emocionalmente ou economicamente. Nunca se sinta humilhado por sua condição econômica inferior.
A vida é uma roda gigante.
Eu desejo à você uma Míriam em sua vida.